sábado, 23 de janeiro de 2010

Escravidão legalizada

Por Henrique Júdice

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Um quinto das brasileiras trabalha quase sem direitos, mesmo quando dentro da lei. Trabalhadoras de segunda categoria para a Constituição, empregadas domésticas muitas vezes são, na prática, servas ou escravas.
Diversos assuntos de interesse direto dos trabalhadores encontram-se em análise no Congresso ou nos tribunais: jornada máxima, garantias contra a demissão injustificada, critérios de remuneração das horas extras. Mas de cada cinco trabalhadoras, pelo menos uma (proporção calculada pelo IBGE nas últimas pesquisas nacionais por amostra de domicílios — PNADs) está pré-excluída dessas necessárias discussões: qualquer que seja seu desfecho, a situação delas não mudará.

Limitação de jornada, proteção contra dispensa sem justa causa e adicional de hora extra estão entre os 34 direitos trabalhistas declarados fundamentais na Constituição e entre os 25 direitos fundamentais que a mesma Constituição não reconhece às empregadas domésticas. O status jurídico constitucional delas no Brasil não chega a um terço do dos demais seres humanos (nos países regidos pelo direito islâmico, a título de comparação, os direitos patrimoniais da mulher pelo menos equivalem à metade dos de um homem).

Escravidão...
O trabalho doméstico tal como existente no Brasil é um restolho da escravidão. É interessante notar, todavia, que, quando esta vigorava oficialmente, a situação legal do trabalhador doméstico livre era menos má que na maior parte dos 121 anos subsequentes a seu fim. Em artigo publicado na revista jurídica O Trabalho em 1997, o juiz Roberto Davis mostra que as Ordenações Manuelinas (1512-1916), asseguravam- lhes pisos salariais e indenização por dispensa. Quando entrou em vigor o primeiro Código Civil (1917), expressão do liberalismo da república cafeeira, os direitos do conjunto da população trabalhadora foram reduzidos a um aviso prévio de um a oito dias. Ao longo dos anos 30 e 40, diversas conquistas foram sendo arrancadas dos patrões e do Estado: férias, descanso semanal, sindicalização, etc. As empregadas domésticas (via de regra filhas ou netas de escravas, quando não ex-escravas elas próprias) permaneceram à margem de todas essas vitórias.

O direito à aposentadoria e demais benefícios da Previdência veio em 1972. Na seara propriamente trabalhista, no entanto, continuaram detentoras de um único direito: o aviso prévio do Código Civil foi substituído por férias de vinte dias úteis. Salário mínimo, descanso remunerado, 13º, irredutibilidade nominal do salário, adicional de férias, licença-maternidade e aviso prévio vieram apenas em 1988, cem anos após a abolição. Tudo o mais, porém, lhes foi negado: adicional noturno, FGTS, limitação de jornada, cobertura por acidentes de trabalho e muitas coisas mais.

Isto ocorre, alegadamente, porque esses direitos acabariam por "onerar de forma demasiada o vínculo de trabalho do doméstico" indo contra seu "caráter de prestação de serviços eminentemente familiar", de sorte que o incremento das garantias daquelas que o exercem "acaba por não se coadunar com a natureza jurídica e sociológica do vínculo de trabalho doméstico". Essas asneiras embasaram o veto presidencial, em 2006, a uma lei que estendia o FGTS e o seguro-desemprego à categoria.

... e feudalismo
A idéia de que o trabalho doméstico, por não visar lucro, não deva ser onerado, é uma das maiores expressões do atraso da formação social brasileira, pois parte do pressuposto de que quem assalaria empregados para seu exclusivo conforto pessoal deva receber tratamento favorecido face a quem o faz para exercer atividade produtiva e gerar riqueza. Esse conceito articula-se com a inserção das domésticas nas famílias burguesas na condição servil de agregadas, pela qual perdem até mesmo sua liberdade de ir e vir (já que não raro ficam presas às casas dos patrões, tendo que servir dia e noite) a troco de supostos favores que só aprofundam essa servidão.

Mas o que há de mais revelador a respeito da "natureza jurídica e sociológica do vínculo de trabalho doméstico" é o fato de a Constituição negar às que o exercem até mesmo direitos sem reflexo pecuniário para o empregador. Não são aplicáveis às empregadas domésticas, por exemplo, os dispositivos constitucionais que proíbem o trabalho infantil e a discriminação por gênero, cor, estado civil ou idade; e nem tampouco os que determinam a redução do risco de acidentes mediante normas de saúde, higiene e segurança do trabalho e a criminalização da retenção salarial.

O sentido disso não é diretamente econômico. Visa, antes, reforçar a inferioridade social a que estão relegadas. a ordem constitucional brasileira, o empregador doméstico — e apenas ele — tem direito a escolher seus empregados e definir-lhes os salários em função da cor da pele, expô-los sem nenhuma responsabilidade ao risco de acidentes e submetê-los a qualquer jornada.

Piores trabalhos
Até bem pouco tempo atrás, podia também explorar mão-de-obra infanto-juvenil e pagar "salários" em comida, roupas (usadas, naturalmente) e outras quinquilharias. Até 1990, não havia nenhum limite de idade: foi preciso uma lei não-trabalhista (o Estatuto da Criança e do Adolescente) para que se proibisse o trabalho antes dos 14 anos em caráter geral, sem excetuar o emprego doméstico. Os descontos foram proibidos em 2006; o trabalho em idade inferior a 18 anos, apenas em 2008, e por força não de uma lei feita no Brasil, mas da lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (TIP), da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A lista TIP, que contém formas de trabalho que os países signatários comprometem- se a proibir para menores, classifica os serviços domésticos como prejudiciais à saúde, à segurança e à moralidade. Vale a pena transcrever os riscos que ela associa a esses serviços: "esforços físicos intensos; isolamento; abuso físico, psicológico e sexual; longas jornadas de trabalho; trabalho noturno; calor; exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna vertebral; sobrecarga muscular; exposição a riscos biológicos". Entre as prováveis repercussões à saúde, encontram-se bursites, tendinites, dorsalgias, queimaduras, ansiedade, alterações na vida familiar, transtornos do ciclo vigília-sono, DORT/LER, deformidades da coluna vertebral, síndrome do esgotamento profissional, neurose, traumatismos, tonturas e fobias.

Sem lei
O tratamento legal do trabalho doméstico é revelador do caráter da formação social brasileira. No que se refere à realidade do próprio trabalho doméstico, no entanto, corresponde apenas a uma pequena parte do problema. Isto porque, de acordo com uma pesquisa ("Raio X do emprego doméstico") realizada pelo IBGE em 2006, pelo menos 3 em cada 4 trabalhadoras domésticas (4,8 milhões num total de 6,5 milhões) não têm sequer carteira assinada. A proporção, no entanto, deve ser maior: arguindo a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, os empregadores domésticos se põem a salvo não apenas de qualquer pesquisa confiável como também da incipiente fiscalização do ministério do Trabalho.

Fonte: www.anovademocracia .com.br

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