quinta-feira, 8 de julho de 2010

A epopéia de Eliza

Imagine-se assistindo a uma tragédia grega escrita por um grande dramaturgo. O palco pode ser Atenas no século III a.C. ou o Rio de Janeiro em 2010. A personagem principal é uma mulher que se apaixonou por um homem casado. Seu dilema, suas experiências e o desenrolar dessa história formam a trama da peça.

Na sociedade em que Eliza – ela se chama Eliza – vive, é comum que homens comprometidos tenham relações extraconjugais. Às mulheres isso não é permitido, claro. Afinal, lá as leis de propriedade são bem claras: o dono pode fazer o que quiser, cabe ao escravo, à mulher ou ao animal obedecer-lhe, ser fiel e servi-lo quando exigido. Não são considerados cidadãos, portanto não têm direitos.

Mas em determinado momento – no segundo ato, para ser mais precisa –, nossa personagem engravida. Isso ocorre ainda no início do romance entre eles. A questão se torna então muito mais complicada: segundo as leis não escritas, tudo bem o homem pular a cerca, mas sem grandes conseqüências como destruir um casamento ou, pior ainda, deixar um herdeiro!

A choradeira ganha força no palco. O coro entoa o ódio da esposa traída. Eliza aparece no canto direito da platéia, já com seu ventre crescendo.

O goleiro, ops, o marido, é um homem público proeminente e decide dar um basta naquilo. Não teria como arcar com tamanho escândalo moral. Não queria ser responsável por seus atos. Ele resolve forçar a jovem a interromper a gestação.

Entra em cena um observador da história, que coloca a seguinte dúvida: “– Ué, mas isso não era crime? Pode fazer aborto no Brasil?”

Persuadida, Eliza toma a poção feita pelos oráculos, mas por sorte o remédio não tem efeito. Ela de fato queria a criança. Os deuses devem ter ouvidos suas preces.

A narrativa avança no tempo e, alguns meses depois, o neném nasce, amparado pela família de Eliza. Ela decide que o goleiro precisa conhecer e reconhecer seu filho. Torna pública a questão e pede auxílio às autoridades locais. Era um menino, um varão, um cidadão! Algo seria feito, sem dúvidas.

Mas Eliza tinha ido longe demais. Seu ex-amante, que antes a amava, planeja em detalhes seu assassinato. Era a única forma de não tê-la mais importunando a sua vida. Uma história dessas poderia, afinal, impedir sua ascensão profissional, comprometer sua imagem e, pior ainda, dilapidar sua fortuna crescente.

Achava que ninguém daria falta dela. Era, afinal, uma mulher sem grande notoriedade. E de fato, o apelo aos sábios e à força da lei ainda não tinha surtido efeito. Tinha que aproveitar a oportunidade.  Pediu ajuda a alguns amigos e tentou não se envolver diretamente na ação.

Daí para frente, as cenas são de horror: Eliza é seqüestrada, mantida em cárcere privado, espancada. Por fim, é morta e esquartejada. Seus restos são oferecidos a Cérbero, guardião do reino de Hades.

O coro entra no final com a lição de moral da história: Eliza foi longe demais para uma mulher. Apaixonou-se de forma livre, engravidou do homem errado, não aceitou suas ordens. Morreu, como deveria ser.


***

O texto lhe pareceu absurdo demais?  Bem, ele pode ser resumido em algumas poucas palavras: pelo menos desde a Grécia Antiga a mulher é considerada pela sociedade (machista) inferior ao homem, de onde decorre todo o tipo de preconceito e discriminação. Entre elas, a violência física e o assassinato. De Sócrates a Bruno, a triste verdade é que Eliza é apenas mais uma personagem dessa epopéia feminina.